Quem sou eu e o que estou fazendo aqui?


Quem sou eu e o que estou fazendo aqui?

Nasci de uma massa antiga de cor branca. Acho que cortaram uma árvore e fizeram uma mistura qualquer. Depois fiquei secando e fui prensada. Depois fui amarrada juntamente com outras semelhantes.
Um dia fui arrancada pela costura que me ligava as minhas irmãs. Algumas pessoas que pareciam ser importantes estavam em volta. Um deles sentado mergulhou uma pena molhada e passou a me rabiscar e de tempos em tempos passava sobre mim um rolo compressor. Quando ele terminou de rabiscar chamou outras pessoas que passaram a rabiscar na parte de baixo do meu corpo plano e esguio.
Um deles era estranho, pois tinha na cabeça uma coroa amarela. Este só escreveu três letras. Finalmente um deles soprou e começou a dobrar-me.
Foi ai que doeu, pois logo depois colocaram algo quente nas minhas costas e prensaram com uma peça de metal. Eu já estava cansada daquilo quando um deles voltou a rabiscar e desta vez do outro lado do meu corpo.
Estava esmagada, prensada e rabiscada. Levaram-me até uma casa estranha e lá uma pessoa uniformizada olhou-me e sem dó nem piedade lascou-me uma paulada com um pedaço de madeira que deixou uma marca enorme com qualquer coisa escrita. Ele também pegou a pena e mandou ver, escreveu um par de números e jogou-me numa prateleira.
Depois fui jogada num saco e de repente tudo ficou escuro. Só sei que tudo estava escuro e balançava sem parar. Foram dias sem fim dentro do saco escuro e de muita trepidação. Às vezes até ficava meio calmo, mas no final arrancaram-me do saco. Novamente eu via a luz, mas não por muito tempo. Colocaram-me em outro saco e de novo comecei a chacoalhar e desta vez era diferente. Às vezes parava completamente e assim passaram-se muitos dias até que de novo veio a luz.
Arrancaram-me do saco e logo veio uma pessoa que me levou e depois de um tempo com muita violência rasgou o cimento vermelho que foi grudado meses atrás nas minhas costas. Suas mãos trepidantes seguraram-me e ouvi diversas expressões, muitas delas eu nem não posso repetir. Indignados os receptores jogaram-me sobre uma mesa e lá fiquei esquecida. Um dia colocaram-me num velho armário e lá fiquei como a bela adormecida.
Um determinado dia houve uma barulheira enorme. O lugar deveria ser demolido e eu fui transferida. Isto aconteceu algumas vezes até que num certo dia parei em mãos mais carinhosas. Até hoje não entendo como isso foi acontecer. Meu destino mudou completamente.
Como eu já estava repleta de furos e alguns rasgos um tipo de médico tentou, sem muito sucesso eu confesso, consertar-me. De qualquer forma recebi certos cuidados e certas partes foram coladas com um papel que diziam ser japonês.
Fui então enviada a uma senhora que com lentes grossas tentou decifrar o texto pregado no meu corpo. As letras já estavam ali há quase 300 anos e devia ser difícil decifrar. Ela não parava de escrever em outro papel bem branquinho as palavras que eu levava. Ela já não usava uma pena. Tinha nas mãos algo longo que eu nunca tinha visto.
Finalmente eu viajei de novo e fui pousar dentro de um envoltório do tipo plástico, flexível. Parecia agora que eu tinha chegado ao meu dono final. Pregada em uma folha especial eu voltei a viajar. Já até perdi a conta de quantas vezes eu entrei e sai de um envelope. Só sei que vi diversas caras com olhos redondos, puxados, pessoas altas e baixas e de todos os tipos. Ficavam na minha frente admirando o meu corpo. Quando eu entendia os meus admiradores diziam: que percurso raro, que carimbo único, que letra bonita. Em outras ocasiões falavam muito só que não entendia nada. Claro que fiquei envergonhada, pois as minhas partes mais secretas estavam sendo expostas e quem me colocou no plástico fez questão de fotografar o lado oculto que também deveria estar à mostra. Com o tempo a vergonha passou e hoje eu até gosto de ser admirada.
Até hoje eu não entendi esta minha andança. Só sei que um dia fui trocada por uma montanha de papel de tamanho menor que no centro mostrava um rosto impresso. Devia ser alguém importante, pois apareceram várias estampas com a sua face pomposa. À medida que o tempo passava era trocada e sempre por mais folhas de tamanho menor e sempre com a estampa de uma pessoa. Até que um dia eu fui trocada por um clique e o homem dizia: a transferência foi completada. Sei lá o que foi transferido. Só sei que eu mudei de casa de novo. Eu fui transferida e nem mesmo fui consultada a respeito. Aliás, durante estes últimos 300 anos fizeram de mim de tudo. Mesmo assim sou feliz, pois ouvi dizer que a maioria da minha espécie sofreu muito. Muitas morreram afogadas, queimadas ou foram jogadas em lugares mal cheirosos e não sobreviveram. Muitas fizeram as pessoas rir, chorar, tremer e muito mais.
Eu pelo menos conheço boa parte do mundo e digo mais, fui a lugares que nem mesmo o meu dono conhece. Ele deve ter até um pouco de inveja, pois fico exposta por dias, admirada e ainda viajo de graça. Também já tive muitos donos e a maioria, assim como minhas infelizes irmãs, foram enterrados ou mesmo queimados e eu continuo a minha jornada com as lindas letras escritas por um velho homem lá pelo ano de 1700 e alguma coisa.
Eu sou feliz e eu acho que você sabe quem eu sou.

Formas de Pagamento